sábado, 7 de novembro de 2009

:: ESTIMA ::

O gemido levantou-se acima do canto dos pássaros. As madres-silva, que enfeitavam as janelas, curvaram-se de tristeza, até as margaridas que ladeavam as entradas da casa perderam um pouco do brilho. Um calafrio profundo atingiu dona Joana fazendo seu corpo todo estremecer, quase derrubou todo o conteúdo do bule sobre si. Deixando os afazeres de lado, limpou as mãos no pano que trazia preso a cintura e correu em disparada para o curral. A aflição era nítida no olhar do pastor, já havia sido banhado pelas lagrimas,contava, contava e recontava, era lógico, porém inaceitável.
Joana aproximou-se tentando acalmá-lo, mas ele continuava contanto, sussurrando o nome e os detalhes de cada ovelha. A cada contagem tornava-se mais claro, faltava-lhe uma ovelha. Ignorando a noite que já começava a cair, o cansaço do dia de trabalho, saiu pelos campos em busca de sua ovelha perdida, deixando noventa e nove delas no curral.
Caminhando em direção à noite, sua mente não conseguia ocupar-se de outra coisa; realmente era tola e distraída aquela ovelha, sempre agitada no meio do bando, elétrica, viva, mesmo assim ela era pequena, não tinha as patas firmes ainda, era frágil como uma porcelana. Não fazia sentido, mas mesmo assim ele tinha por ela grande estima.
A noite já tinha tomado conta dos céus. Não se via mais nenhum vestígio do sol que brilhara durante o dia. Joana permaneceu na cozinha, solitária, apenas acompanhada da luz de um pequeno lampião. Da janela um vento frio a atingiu; a chama sobre a mesa quase se extinguiu. Levantou-se para fechar a janela, mas antes deu uma ultima olhada na noite. A lua brilhava cheia, não havia uma única nuvem, o que anunciava uma noite fria. Não levará casaco, comida ou sequer água, estava entregue a própria sorte, sozinho, despojado de tudo. Ela não sabia onde ele estava, mas sabia que de nenhuma maneira ele iria desistir.
Os caminhos eram terríveis. Depois das pastagens a beleza do campo ganhava a forma de um terreno castigado. Só com a luz da lua que o ajudava do céu, o bom pastor segue por terras secas, que não ofereciam chances a vida; passou por terrenos pedregosos, difíceis de caminhar, que feriam seus pés e seus braços. Seu corpo já estava sem forças, suas mãos marcas já não conseguiam se firmar no caminho. Quem seria capaz de fazer tal coisa? Que pastor deixaria todo seu rebanho por uma única ovelha? De onde nasce esse sentimento que o faz arriscar tudo, por tão pouco? O que move o bom Pastor é o amor, somente isso.
Em nenhum momento por nem um segundo sequer ele perde o amor ao chamá-la, sua voz já rouca a chama com amor, desejando que ela possa ouvir. Descendo pelos espinheiros, sem importar-se com os cortes que lhe marcam a pele, sua alma se aflige ao imaginar sua ovelha ali, perdida. De algum modo, que nenhum entendido podia explicar, ele ama aquela ovelha tanto quanto as outras que ficaram guardadas no curral.
Quando seu corpo começa a querer desistir,quando sua mente,já exausta, começa a falhar, sua alma com amor continua a gritar por sua ovelha. A noite já estava quase no fim, o frio flagelava seu corpo sem dó, ao seu lado figurava um barranco seco, com pedras soltas, e arbustos espinhosos. Foi desse cenário que ao chamar ouviu a resposta de sua ovelha. Seu gemido ao mesmo tempo em que lhe rasgou a alma de dor pelo sofrimento que demonstrava, o encheu de alegria por encontrá-la. Sem pensar no frio, nas feridas ou na dor que o tomava por completo, lançou-se barranco abaixo, com a mesma força de um jovem, com o ímpeto de um moço. Aquilo parecia uma armadilha, o barranco projetava-se para os espinheiros, desejando que a queda dos distraídos fosse ali. O chão não oferecia qualquer tipo de estabilidade, as pedras soltavam-se o fazendo cair sobre suas próprias costas. As únicas coisas que o mantinham firme eras seus cotovelos que riscavam o solo. A queda parecia eterna, mas os arbustos espinhentos fizeram essa ilusão desaparecer. Como pontas de faca os espinhos marcaram sua pele profundamente, o prendendo como mãos malvadas; depois, enquanto tentava libertar-se os sentia cravando em sua carne, como algo que tenta impedi-lo.
Não se concentrou no seu próprio arfar, nem na dor que sentia, por que depois do espinheiro, podia vê-la, ferida, suja, ofegante, seu olhar de pavor comoveu o bom Pastor. Livrando-se dos espinhos e das pedras, aproximou-se dela. Com ternura no olhar e com suas mãos furadas a libertou do jugo que a prendia. Sobre os seus ombros fartos e cansados a colocou, levando-a para fora daquela situação.
O sol ainda não tinha mostrado seus raios, mas já era possível ver seu brilho por de trás das colinas. Dona Joana não dormiu aquela noite, revirou-se na cama, preocupada com o destino do bom Pastor. O que ela não esperava era que com o sol, viria um grito, diferente do ultimo que ouvira. Era um brado de vitória, um canto de alegria, como uma musica que enche a alma de fartura. Ao romper a porta vê o bom Pastor subindo dos campos, trazendo em seus braços o que parecia ser a coisa mais valiosa de todos os tempos, um tesouro que nenhuma mente jamais conseguiu imaginar, a coisa mais preciosa dessa terra. Ele estava sujo, ferido e humilhado, mas sua alma estava alegre, pois sua ovelha perdida foi resgatada, ela estava morta, mas reviveu. Dona Joana não entendia: era só uma ovelha, mas como ele a estima.
Vinicius Neri

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